Quando começamos a meditar com alguma regularidade, nós vamos sentindo a necessidade de querer repetir a prática mais e com uma melhor performance… Esse é um ponto interessante pois eventualmente parece haver dois lugares: quando estamos sentados e quando estamos com os sapatos no pé, andando no mundo.
Essencialmente, o que vamos fazer no treinamento é uma “leitura” mais ampla diante das coisas, é traduzir com o olho do Darma, ter a capacidade de introduzir liberdade e lucidez diante das situações. Nós vamos convidar as experiências a partir de uma base interna não contaminada, vamos olhar com uma perspectiva mais ampla no encontro com as mesmas experiências.
Com a prática de shamata nós paramos para poder perceber o movimento da mente sem necessariamente nos fundirmos com o que surge. Começamos a perceber uma ação da mente além do movimento usual de resolver, concluir, controlar. Então, quando avançamos na prática, nesse sentido, pode surgir em nós a vontade queremos aumentar o tempo de prática. Quando chegamos nesse ponto, é bom lembrarmos o seguinte:
- Tudo o que fazemos antes e depois da prática formal será reintroduzido dentro do silêncio da meditação;
- Os intervalos e a prática formal são sempre complementares;
- Seguiremos assim até o momento em que os intervalos e a prática formal se tornam uma só coisa.
1. Tudo o que fazemos antes e depois da prática formal será reintroduzido dentro do silêncio da meditação
Antes de seguirmos, “prática formal” é o que usualmente nós chamamos de praticar meditação, ou seja, nós recitamos a prece de sete linhas, o refúgio e a bodicita. Em seguida, nós sentamos em uma sessão, de cinco, dez ou quinze minutos. Seguimos repetindo esse ciclo em silêncio até que enfim, dedicamos os méritos e encerramos a prática. O antes e depois da meditação pode também ser descrito como pós-meditação.
Numa abordagem mais profunda, meditar vem como as etapas de visão, meditação e conduta (ação), ensinado por Garab Dorje. Meditar é essencialmente trabalhar com a mente e tentar mudar os hábitos fundamentais que temos desenvolvido devido a ignorância quanto a verdadeira natureza da realidade. Quando nós meditamos, meditamos com visão. Então podemos dizer que meditação é na verdade o processo de nos habituarmos a visão. Esse olho que se abre irá transformar nossas dúvidas, pensamentos conceituais e aflições mentais em sabedoria.
Uma vez que esses pontos começam a amadurecer, nós começamos a perceber que meditar não é apenas ficar parado, de frente à uma parede. As nossas ações de corpo, fala e mente que antes passavam despercebidas, agora ganham nitidez. Começamos a perceber os potenciais de negatividade cada vez mais no dia-a-dia e ao invés de seguirmos gerando mais apego ou aversão nas situação, jogamos lucidez em cima.
Naturalmente, isso não acontece de uma hora para outra… e sim, pela regularidade na prática. A meditação acalma a mente e a lucidez torna o que quer surja mais claro, diante de um olhar com um maior discernimento sobre a natureza da mente. Então, tudo o que fazemos antes e depois da prática formal será reintroduzido dentro do silêncio da meditação.
Em O sol da Sabedoria, Khenpo Tsultrim Gyamtso Rinpoche descreve a importância desse processo:
Se, entretanto, conseguirmos ver que as coisas não são realmente verdadeiras – que elas são meras aparências, cuja natureza verdadeira está além de qualquer conceito sobre o que elas possam ser – nossa experiência na vida, tanto em relação aos acontecimentos bons quanto aos ruins, será aberta, espaçosa e descontraída. Quando alguma coisa boa nos acontecer, seremos capazes de desfrutá-la de maneira relaxada, sem apego e sem medo de que ela acabe. Quando alguma coisa ruim acontecer, se reconhecermos sua verdadeira natureza, nós ficaremos descontraídos e nossa mente permanecerá imperturbável. Em resumo, conceber a verdadeira natureza da realidade promove paz interna, alegria autêntica e tranquilidade, que condições externas não conseguem perturbar.
2. Os intervalos e a prática formal são sempre complementares;
Intervalo aqui é basicamente qualquer tipo de observação, contato com o mundo após a sessão de prática, é o convite perfeito às aparências que antes nos arrastavam. Isso se dá em corpo, fala e mente. Somos convidados a olhar os fundamentos do caminho: evite produzir sofrimento para você e aos seres; Traga benefícios verdadeiros; Dirija sua própria mente.
O que quer que surja é visto como um ornamento do próprio ensinamento que estamos, no ponto que estamos vendo, no lugar onde estamos. Vamos ser convidados a ter mais compaixão e paciência conosco e com os seres; O laboratório perfeito do samsara é a própria mente que compreende os fenômenos dentro de uma perspectiva mais ampla sobre si mesma.
Então, não adianta apenas sentar em meditação. Esse ponto é fundamental mas é insuficiente. É preciso ter lucidez sobre as coisas. Se a gente sentar em silêncio e sair dando margem para confusão se restabelecer, vamos perder tempo. Por isso, é muito importante olharmos os fundamentos do caminho de oito passos: motivação correta e evitar produzir sofrimento aos seres, observar a casa em chamas e como ela ganha mais força é uma etapa interessante. De nada adiantará ficar isolado, em silêncio, se ficarmos repetindo os padrões habituais dentro dos seis reinos. Uma etapa contrabalanceia a outra pois o cotidiano vai se encarregar de trazer os lugares que precisamos visitar, isso no aspecto sutil da experiência. Se a pessoa já puder fazer a transição entre os quadros de 240 e o de 200 itens, isso já é um grande passo.
3. Seguiremos assim até o momento em que os intervalos e a prática formal se tornam uma só coisa.
É como houvesse um click interno e a experiência e a repetição cessasse a etapa de dúvida e a internalização do ensinamento. É basicamente quando não perdemos mais o que vimos na prática sentada e aquilo fica alinhado mesmo nas situações corriqueiras. O treinamento então surge para nos ajudar a estabelecer essa aparente lacuna entre a meditação, os ensinamentos e o dia-a-dia.
A culminância, de fato, é a visão das cinco sabedorias sem se perturbar diante das situações. Nesse ponto, a mandala das cinco sabedorias se abre tanto internamente como uma experiência viva, pulsante, como uma possibilidade de trazer benefícios aos seres, um tesouro do espaço básico.
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