Conheça Longchenpa

Longchenpa
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Longchen Rabjam (Longchenpa) nasceu em 1308 em um vilarejo na parte superior do vale de Dra em Yuru, um distrito ao sul da província central do Tibete.

Não há registro da importância social de sua família, exceto que seu pai, Lopön Tsensung, um lama da escola Nyingma, era descendente do antigo clã de Rog, que, 500 anos antes, havia enviado um dos 7 primeiros homens selecionados para receber do grande abade Śāntarakṣita a ordenação monástica em Samyé.

Infância e origem

A mãe de Longchenpa pertencia ao clã de Drom e, portanto, era parente distante de Dromtön Gyalwai Jungne, um dos patriarcas da tradição Kadampa, o principal discípulo de Atiśa (982-1054) e fundador do monastério de Reting, em 1057. 

Longchenpa recebeu sua primeira educação religiosa de seu pai, que lhe concedeu suas primeiras iniciações tântricas e o instruiu também nos princípios da medicina e da astrologia. Quando Longchenpa tinha 9 anos de idade, sua mãe morreu; e esta tragédia foi seguida, 2 anos depois, pela morte de seu pai. Então órfão, o jovem entrou no mosteiro de Samyé e aos 12 anos de idade recebeu sua primeira ordenação do abade Sonam Rinchen e do mestre Lopön Kunga Özer.

Em virtude da escassez de provas documentais, é difícil formar uma imagem clara do cenário da condição de Samyé em 1320. Após o colapso do império depois da morte de Lang Darma em 841, Samyé, como os outros templos imperiais, mergulhou em um estado decadente, de modo que quando os primeiros monges retornaram às províncias centrais, no final do século X, estava vazio e arruinado.

Entretanto, foi gradualmente restaurado. Sua antiga biblioteca, que não havia sido saqueada durante o período de perseguição e abandono, estava intacta; e quando Atiśa a visitou em 1047, ficou impressionado com sua riqueza, surpreendido ao encontrar ali manuscritos em sânscrito de obras que haviam sido perdidas na Índia.

Durante os séculos seguintes, o mosteiro e o templo passaram por várias adversidades mas, tendo sido reconstruído pelos membros da escola Kagyu no decorrer do século XIII, provavelmente já estaria em condições adequadas na época em que Longchenpa foi viver lá. Ele provou ser um estudante ávido com uma capacidade avançada de memorização e, tendo à sua disposição uma coleção incomparável de livros, logo lançou as bases para sua futura reputação como “o erudito versado de Samyé (bsam yas lung mang ba)”. 

Em 1327, aos 19 anos, ele partiu para a universidade monástica de Sangphu Neutog, não muito distante de Lhasa, onde permaneceu por 6 anos. Sangphu era um ambiente de aprendizado de grande prestígio. Fundado em 1073 por Ngok Lekpai Sherab, que havia sido um dos discípulos mais próximos de Atiśa, foi o berço do escolasticismo tibetano e se tornou, em seu apogeu, o centro de aprendizado mais ilustre do país.

No início do século XIV, dividiu-se em duas instituições separadas, Lingtö e Lingmé, e foi na primeira onde Longchenpa entrou, durante a gestão de Tengönpa e Chöpel Gyaltsen, seus 15° e 16° abades.

Vida escolástica

Enquanto estava em Sangphu, Longchenpa absorveu todo o currículo escolástico. Seus estudos abrangeram todo o conjunto de sistemas de princípios budistas. Isto incluía o Abhidharma, a tradição logico-epistemológica de Dignāga e Dharmakīrti, a escola Yogācāra e os 5 textos de Maitreya e Asaṅga com seus comentários, e os textos de Madhyamaka de acordo, podemos supor, às escolas svātantrika e prāsaṅgika.

Deve-se notar que, na época de Longchenpa, já haviam passado 200 anos desde as grandes controvérsias svātantrika-prāsaṅgika do século XII. E quase um século havia passado desde que Sakya Paṇḍita adotou oficialmente a visão prāsaṅgika, combinada com a tradição logico-epistemológica, como a posição oficial de sua escola.

E como, no início do século XIV, Sangphu havia caído em grande parte sob a influência dos Sakya, é muito provável que Longchenpa tenha estudado Madhyamaka principalmente de acordo com a visão Sakya — bem antes da nova interpretação de Tsongkhapa causar tamanha agitação na virada do século XV.

Entretanto, o fato de que a maturidade intelectual de Longchenpa foi fortemente influenciada por sua compreensão da Grande Perfeição, isso torna sua interpretação da Madhyamaka e sua relação com a Yogācāra um tema de grande interesse, prenunciando a posição de Mipham Rinpoche 500 anos depois. 

É muito fácil de imaginar que o jovem Longchenpa era um estudante diligente e exemplar. Além disso, graças a um poderoso dom contemplativo cultivado precocemente, ele foi capaz de combinar seus estudos teóricos com uma intensa prática meditativa, que, diz-se, deu frutos mesmo em tenra idade, em visões puras de várias deidades como Mañjuśrī, Sarasvatī, Vajravārāhī, Tara, e assim por diante. 

Durante seu período de estudos em Sangphu, Longchenpa demorou um pouco para buscar e requisitar ensinamentos de mestres de diferentes tradições e linhagens. Isso ilustrava o espírito libertário e eclético que caracterizava a vida religiosa e acadêmica do Tibete do século XIV.

A animosidade sectária e o espírito partidário que iria assolar as diferentes escolas era ainda algo pro futuro. E Longchenpa, como Tsongkhapa, seu contemporâneo mais jovem, foi capaz de perseguir interesses abrangentes e satisfazer sua sede de conhecimento, enriquecendo assim o currículo acadêmico que havia seguido em Sangphu com uma profusão de instruções e transmissões, no Sūtra e no Tantra, de, dizem, pelo menos vinte professores diferentes.

Foi também nesta época que ele recebeu do mestre Zhönnu Töndrup instruções avançadas na tradição Nyingma sobre as práticas dos estágios de geração e perfeição do Tantra, juntamente com os ensinamentos da classe mental da Grande Perfeição.

Obstáculos, dificuldades no caminho e retiro espiritual

Por mais enriquecedora e diferenciada que tenha sido a educação de Longchenpa, seu período como estudante não foi isento de dificuldades; no final desse período, seus dias foram marcados pela animosidade de um grupo de estudantes de Kham que, através de um comportamento rude e invejoso, conseguiram afastá-lo de lá.

Quando isso aconteceu, este revés provou ser o presságio de algo muito afortunado. Sacudindo o pó de Sangphu de seus pés, partiu com a intenção de dedicar algum tempo à meditação solitária. Um encontro casual com um simpático erudito levou ao descobrimento de uma caverna agradável. Longchenpa passou ali 8 meses em retiro escuro, no qual teve uma visão de Tārā que, em resposta a suas orações, prometeu-lhe proteção e o coroou com seu próprio diadema.

À medida que a visão se desfazia, Longchenpa entrou em profunda absorção que durou vários dias. A visão de Tārā, Tulku Thondup comenta, estabeleceu o elo interdependente para seu encontro com um mestre da Essência do Coração, ou Nyingthig (snyin gthig), os ensinamentos mais elevados da Grande Perfeição.

Ao sair de seu retiro, Longchenpa voltou novamente para Samyé. Ele não ficou lá por muito tempo, porém, em 1335, aos 27 anos de idade, e graças mais uma vez aos estímulos visionários de Tārā, ele partiu para encontrar seu guru raiz Zhönnu Gyalpo, o mestre mais conhecido como Rigdzin Kumaradza (1266-1343).

Encontro com o Rigdzin Kumaradza

Naquela época, Kumaradza vivia em um acampamento no altiplano de Yartö Khyam, na companhia de cerca de 70 discípulos. Preparado para este encontro por um sonho premonitório, ele acolheu Longchenpa, a quem reconheceu como o futuro detentor da sua linhagem.

Rigdzin Kumaradza

Ele o recepcionou calorosamente e permitiu sua participação em seus ensinamentos, apesar do fato de que Longchenpa não possuía nem mesmo os recursos materiais mais básicos.

O acampamento monástico de Kumaradza era essencialmente nômade e a comunidade estava frequentemente se movimentando. Isto representava dificuldades consideráveis para Longchenpa, que no decorrer de seus estudos em Samyé e Sangphu tinha sem dúvida adquirido os hábitos regulares e pacíficos do sedentarismo acadêmico.

No entanto, perseverou, e enfrentando as dificuldades físicas que eram uma característica cotidiana ao conviver com Kumaradza, permaneceu com seu professor por cerca de 2 anos. O próprio Kumaradza estava há muito tempo acostumado a tais austeridades.

Pois como discípulo do grande iogue Melong Dorje (1243-1303), ele cresceu e chegou a vida adulta em meio ao mesmo tipo de dificuldades materiais que agora Longchenpa tinha que suportar. Kumaradza tomou Longchenpa como seu filho do coração e lhe transmitiu os ensinamentos Nyingthig — isto é, o Vima Nyingthig — do qual ele era um detentor da linhagem.

Um sobrevoo sobre a Grande Perfeição

Neste ponto, pode ser útil rever brevemente a natureza e a posição do Nyingthig dentro do sistema de 9 veículos da escola Nyingma.

De acordo com este esquema, há 3 veículos do sūtra correspondentes aos 2 caminhos Hīnayāna dos śrāvakas e pratyekabuddhas, juntamente com o caminho Mahāyāna dos bodhisattvas.

Estes veículos do Sūtra são posteriormente ampliados por 6 veículos do Tantra, 3 externos (Kriyā, Caryā e Yoga) e 3 internos (Mahāyoga, Anuyoga, e Atiyoga). Dos 3 tantras internos, Mahāyoga e Anuyoga correspondem respectivamente às práticas dos estágios da geração e perfeição, enquanto Atiyoga é o veículo da Grande Perfeição ou Dzogchen. 

A Grande Perfeição é dividida em 3 classes, designadas de acordo com a característica principal dos ensinamentos abordados. A primeira delas é a “classe da mente” (sems sde), que enfatiza a natureza luminosa da consciência como a base a partir da qual os fenômenos se manifestam. Lembremos que foi esta divisão da Grande Perfeição que Longchenpa já havia recebido do mestre Zhönnu Töndrup.

A segunda divisão da Grande Perfeição é a “classe do espaço” (klong sde), assim denominada porque enfatiza a expansão vazia da consciência na qual os fenômenos se manifestam.

Finalmente, a “classe de instruções essenciais” (man ngag gi sde) é livre da fixação tanto do aspecto luminoso quanto do aspecto da vacuidade da consciência. Por esta razão, transcende as duas classes anteriores e é, portanto, considerada suprema.

A classe de instruções essenciais é dividida ainda em 4 seções: externa, interna, secreta, e “mais e insuperavelmente secreta” (phyi, nang, gsang, yang gsang bla med). Destas, a quarta e a seção mais elevada é conhecida como a Essência do Coração, ou Nyingthig, e foi esta que Longchenpa recebeu de Kumaradza. 

A transmissão dos ensinamentos do Nyingthig

A história da chegada e transmissão dos ensinamentos do Nyingthig no Tibete é uma história pitoresca, fascinante, mas bastante complicada. Em geral, diz-se que eles foram trazidos à Terra das Neves através de três fontes: o paṇḍita indiano Vimalamitra, Guru Padmasambhava e o grande tradutor tibetano Vairotsana.

No contexto da herança espiritual de Longchenpa, apenas os 2 primeiros precisam ser considerados aqui. 

Dizem que Vimalamitra foi convidado pelo rei Trisong Detsen para ir ao Tibete por volta da virada do século IX. Em Samyé e para um pequeno grupo de 5 pessoas, incluindo o próprio rei e o mestre Nyang Tingdzin Zangpo, Vimalamitra transmitiu secretamente os 17 tantras do Nyingthig, seus comentários explicativos e as instruções essenciais associadas, que ele mesmo tinha recebido do mestre Śrī Siṃha.

Após este importante evento, ele escondeu os 4 volumes das instruções essenciais do Nyingthig, escritos em tintas de diferentes cores, no penhasco de Tragmar Gekong, perto de Samyé Chimpu. Antes de partir para a China, Vimalamitra encarregou seus ensinamentos a Nyang Tingdzin Zangpo, iniciando assim uma linhagem de transmissão individual de mestre para discípulo que deveria ser mantida por muitas gerações condicionada ao mais absoluto sigilo. Nyang atingiu o corpo de arco-íris em 838.

Naquela época, tendo já transmitido estes ensinamentos a um discípulo de confiança, ele também tinha tomado a precaução de ocultar os textos dos dezessete tantras, bem como outros textos do Nyingthig, no templo de Zhai Lhakhang, no vale de Drikung, na província de Uru. 

Após a ocultação desses textos, a transmissão oral secreta continuou por cerca de 140 anos através de uma linhagem de mestres, e se diz que todos alcançaram o corpo de arco-íris. Por fim, foi recebido pelo mestre do século XI Neten Dangma Lhungyal. Em resposta ao que as visões indicavam, Dangma Lhungyal removeu os textos dos 17 tantras de seus esconderijos no Zhai Lhakhang e eventualmente transmitiu-os a Chetsun Senge Wangchuk (séculos XI-XII), que mais tarde também recuperou os quatro volumes de instruções essenciais que Vimalamitra escondeu em Trakmar Gekong. Chetsun Senge Wangchuk fez cópias desses textos e escondeu-os novamente. Isso provou ser um ponto de virada na transmissão do ensinamento.

Pois daquele momento em diante, a linhagem Nyingthig de Vimalamitra, doravante referida como Vima Nyingthig (Bi ma snying thig), passou a ser mais abertamente propagada, chegando finalmente, através de Melong Dorje e Kumaradza, até o próprio Longchenpa. Depois de ficar com Kumaradza por dois anos, Longchenpa, em 1337, embarcou num período de 6 anos de retiro parcialmente solitário. 

Além do Vima Nyingthig recebido de Kumaradza, Longchenpa também herdou e tornou-se o principal detentor da linhagem do Khandro Nyingthig (mKha’ ‘gro snying thig), a Essência do Coração da Ḍākinī, os ensinamentos da Grande Perfeição trazidos ao Tibete por Guru Padmasambhava.

Ao contrário do Vima Nyingthig, que era essencialmente uma linhagem transmitida oralmente, o Khandro Nyingthig estava escondido como um terma, ou tesouro do Darma. A história conta que Trisong Detsen teve uma filha, Pemasel, que morreu quando era criança. Sofrendo por isso, o rei suplicou a Guru Rinpoche para que trouxesse a criança de volta à vida.

Reanimando Pemasel, o grande Guru transmitiu a ela as instruções essenciais para os 17 tantras pertencentes aos ensinamentos Nyingthig que, como Vimalamitra, ele havia recebido de Śrī Siṁha. Ele fez isso por meio da “ocultação de termas”, colocando-os – longe dos perigos da degeneração e declínio – nos níveis mais profundos da mente da princesa.

Ele também confiou seus ensinamentos Nyingthig a Yeshe Tsogyal e a uma vasta multidão de ḍākinīs de sabedoria, e escondeu-os novamente como um tesouro da terra na caverna de Danglung Thramo, profetizando que eles acabariam sendo revelados por uma encarnação da princesa.

No momento adequado, Pemasel renasceu como o mestre Pema Ledreltsel, que
quinhentos anos depois revelou o tesouro, no final do século XIII. Na linha de renascimentos, costuma-se dizer que Longchenpa foi o sucessor imediato de Pema Ledreltsel. E embora, por essa razão, se diga que ele mantinha o tesouro do Khandro Nyingthig em sua própria mente, recebeu a transmissão dos textos de tesouro do discípulo de Pema Ledreltsel, Gyalse Lekpa Gyaltsen.

Resta dizer, para concluir, que os dezessete tantras do Nyingthig também foram
escondidos separadamente por Guru Rinpoche, sendo descobertos mais tarde no Butão por Pema Lingpa (1450-1521).

Propagação dos ensinamentos e atividade iluminada de Longchenpa

Longchenpa começou a transmitir os ensinamentos Nyingthig em torno dos seus 30 anos. Em 1340, com a idade de trinta e dois anos, ele deu as iniciações do Vima Nyingthig pela primeira vez em Shugsep, nas proximidades de seu eremitério em Gangri Thökar. Um ano depois, em seguida a esses textos, foram dadas as iniciações do Khandro Nyingthig.

Logo depois Longchenpa começou um importante trabalho de compilação no qual o Vima Nyingthig e o Khandro Nyingthig foram unidos. Para o Vima Nyingthig, compôs um texto de apoio consistindo de trinta e cinco tratados intitulados A Essência Mais Íntima do Mestre, ou Lama Yangtig (bLa ma yang tig), e para o Khandro Nyingthig, revelou como um tesouro mental (dgongs gter) uma série de cinquenta e cinco tratados de material suplementar chamado de A Essência Mais Íntima da Ḍākinī, ou Khandro Yangtig (mKha’ ‘gro yang tig).

Essas 4 coleções de escrituras – novamente complementadas por um comentário abrangente chamado A Essência Profunda e Mais Íntima, ou Zabmo Yangtig (Zab mo yang tig) – são juntas referidas como as 4 Partes do Nyingthig ou Nyingthig Yabzhi (sNying thig ya bzhi) e constituem uma das obras mais importantes de Longchenpa. 

Por conta de seu temperamento, Longchenpa foi atraído para uma vida eremítica de estudo, composição e retiros de meditação. E a maior parte de sua vida adulta, enquanto estava no Tibete, foi passada em ou perto de seu eremitério em Gangri Thökar.

No entanto, a fama de sua erudição e realizações sagradas, atraiu muitos seguidores, e inevitavelmente ele se tornou uma figura bem conhecida em todas as províncias centrais.

Fonte: Longchenpa, The Trilogy of Rest. Volume I: Finding Rest in the Nature of the Mind.


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Biografia oficial: The Life of Longchenpa: The Omniscient Dharma King of the Vast Expanse

Autor
Coordenador
Praticante budista e instrutor de meditação. Desde 2011 dedica seu tempo à descoberta do coração desperto (bodicita), a partir dos ensinamentos de Buda e nas instruções práticas de Lama Padma Samten. Casado, pai de 2 filhos, é coordenador da Roda do Darma e tutor no CEBB.

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