É isso que significa ser humano? (Pema Chodron)

Pema Chodron
Tempo estimado de leitura: 14 minutos

Uma das formas de agradecer a generosidade e bondade dos grandes seres de sabedoria é compartilhar e apoiar suas atividades. Dessa forma, ampliamos o alcance dos seus ensinamentos e os benefícios aos seres.

Uma das nossas iniciativas recentes foi oferecer um ciclo de estudos e práticas com livro “a beleza da vida”, de Pema Chodron. Para saber mais clique aqui

Pema Chodron

A Gryphus editora, a responsável pelos direitos autorais da obra em português, atendeu gentilmente o meu pedido para transcrever o primeiro capítulo do “A beleza da Vida”, da Pema Chodron, para os alunos do ciclo de práticas semanais na Roda do Darma.

Fomos além: disponibilizamos o primeiro capítulo aqui, na íntegra, mesmo para quem ainda não participa dos nossos encontros semanais.

Por favor, pedimos que o conteúdo desse post não seja reproduzido em apostilas e/ou outros materiais.

O livro está disponível para compra sob demanda e também em e-book pela editora Gryphus ou Amazon e estante virtual.

NOTA: fiz algumas revisões pessoais na tradução abaixo, para facilitar o estudo. Você verá os termos em negrito com []* que sinalizam os termos que revisei e mantive o original no texto também. Coloquei subtítulos para para facilitar a leitura.


Cap.1 – A essencial ambiguidade de ser humano

“A vida é como entrar num barco que está para zarpar e afundar no mar.”

— Shunryu Suzuki Roshi

Como seres humanos, compartilhamos a tendência de bracejar por certezas sempre que percebemos tudo à nossa volta em fluxo. Em horas de dificuldade, o estresse de tentar encontrar terra firme — algo previsível e seguro em que ficar — se intensifica.

Na verdade, porém, a verdadeira natureza da nossa existência está eternamente em fluxo. Tudo está em constante mudança, estejamos cientes disso ou não. 

Que apuro! Parecemos condenados a sofrer simplesmente por termos um temor arraigado do modo como as coisas realmente são. Nossas tentativas de encontrar prazer e segurança duradouros ficam em conflito com o fato de sermos parte de um sistema dinâmico, no qual tudo e todos fazem parte do processo. 

Então é aí que nos encontramos: bem no centro de um dilema. E ele nos deixa com questões provocantes.

Como é que podemos nos entregar à vida, encarando a impermanência, sabendo que um um dia iremos morrer? Como é perceber que nunca poderemos, completa e finalmente, deixar tudo perfeitinho? Será possível aumentar nossa tolerância a instabilidade e mudança? Como podemos fazer amigos com a imprevisibilidade e a incerteza – e adorá-los como veículos de transformação das nossas vidas?

[A ambiguidade de ser humano]*

O Buda chamou de impermanência uma das marcas distintivas da nossa existência, um fato incontestável da vida. No entanto, parecemos resistir com toda força a isso.

Achamos que bastaria fazermos isso e não para fazer aquilo para, de algum modo, conseguirmos uma vida segura, digna de confiança e controlável. Ficamos muito decepcionados quando as coisas não saem bem do modo como planejamos. 

Não faz muito tempo, li uma entrevista com o correspondente de guerra Chris Hedges na qual ele usou uma expressão que me pareceu uma descrição perfeita da nossa situação: “a ambiguidade moral da existência humana.” 

Creio que isso se refere a uma escolha fundamental com que todos nos confrontamos: a de nos agarrarmos à falsa segurança de nossas ideias fixas e pontos de vista tribais, mesmo que isso só nos traga uma satisfação momentânea, ou de superar nosso medo e dar o salto para ter uma vida autêntica. 

Aquela expressão, “a ambiguidade moral da existência humana”, teve uma forte ressonância em mim porque é o que venho explorando há anos. Como é que podemos relaxar e ter uma relação autêntica, apaixonada com a incerteza essencial e a falta de chão, o desenraizamento de ser humano?

[A ansiedade essencial de ser humano] *

Meu primeiro professor, Chogyam Trungpa, costumava falar da ansiedade essencial de ser humano. Essa ansiedade ou mal-estar diante da impermanência é algo que aflige mais que uns poucos, é um estado que tudo permeia, sendo compartilhado pelos seres humanos.


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Mas se, em vez de ficarmos abatidos com a ambiguidade e a incerteza da vida, aceitássemos e relaxássemos em meio a isso? E se disséssemos “Sim, é assim que as coisas são; é isso que ser humano significa”, e decidíssemos nos acomodar e aproveitar o passeio? 

Felizmente, o Buda deixou muitas instruções para que isso acontecessese realizasse. Entre elas encontra-se o que é conhecido na tradição do budismo tibetano como os Três Votos ou Três Compromissos. São três métodos para abraçar a natureza caótica, instável, dinâmica, desafiadora de nossa situação como caminho para o despertar. 

[Os Três Votos ou Três Compromissos como caminho para o despertar] *

O primeiro compromisso, tradicionalmente denominado o Voto da Praimoksha, é o fundamento para a libertação pessoal. É o compromisso de fazer o melhor possível para não causar dano com nossas ações, palavras ou pensamentos, o compromisso de sermos bons uns com os outros.

Ele proporciona uma estrutura em que se aprende a trabalhar com nossos pensamentos e emoções e a se abster de falar e agir em resultado de confusão. 

O próximo passo para ficarmos confortáveis com o desenraizamento é o compromisso de ajudar os outros. Tradicionalmente denominado de Voto de Bodisatva, é o compromisso de dedicar nossas vidas a manter coração e mente abertos e a nutrir nossa compaixão com o desejo de atenuar o sofrimento do mundo. 

O último dos Três Compromissos, tradicionalmente conhecido como o Voto de Samaya, é a resolução de abraçar o mundo bem [tal]* como ele é, sem preconceito. É um compromisso de ver tudo que encontramos, bom e mau, agradável e doloroso, como uma manifestação da energia desperta. É o compromisso de ver todas as coisas como meios para podermos ficar ainda mais despertos. 

Mas o que significa a essencial ambiguidade de ser humano em termos da vida cotidiana? Acima de tudo, significa entender que tudo muda. Como Shantideva, mestre budista do século VIII, escreveu em The Way of Bodhisattva [O Caminho do bodisatva, ed. Makara]*

Tudo que posso e uso 

é como a visão fugaz de um sonho, 

Somo nos domínios da memória;

e, sumindo, não será mais visto. 

Quer estejamos conscientes ou não, o chão está sempre se movimentando. Nada dura, inclusive nós. É provável que haja muito poucas pessoas que, num momento ou outro, se preocupe com a ideia “Vou morrer”, mas há muitas evidências de que esse pensamento, esse medo nos persiga constantemente. “Eu também sou uma coisa breve e passageira”, observou Shantideva. 

[Qual a verdadeira causa do sofrimento humano]?*

Então, como é ser humano nesse estado ambíguo e improcedente? Antes de tudo, nos agarramos ao prazer e tentamos evitar a dor, mas, apesar de nossos esforços, estamos sempre alternando entre os dois.

Com a ilusão de que a segurança e o bem-estar constante representam o estado ideal, fazemos todo tipo de coisas para tentar atingi-lo: comemos, bebemos, nos drogamos, passamos horas online ou assistindo a TV.

Apesar disso, nunca atingimos o estado de satisfação inabalável que buscamos. De vez em quando nos sentimos bem: fisicamente não há dor e mentalmente tudo vai bem.

Então a situação muda e somos atingidos pela dor física ou angústia mental. Imagino que até seria possível fazer um gráfico da alternância de prazer e dor em nossas vidas, a cada hora, um dia após o outro, ano vem, ano vai, sendo que primeiro um predomina e depois o outro. 

A causa do nosso sofrimento não é a impermanência por si só, nem o fato de sabermos que vamos morrer, pensou o Buda, mas sim nossa resistência à incerteza essencial da nossa situação.

O desconforto surge de todos os nossos esforços para colocar um chão sob os pés, para realizar nosso sonho de estar constantemente bem. Quando resistimos à mudança chama-se sofrimento.

Mas, quando conseguimos entregar os pontos de vez e não lutar contra isso, quando conseguimos abraçar a falta de base da nossa situação e relaxar em sua qualidade dinâmica, chama-se iluminação, ou despertar para nossa natureza verdadeira, para nossa bondade essencial. Outra palavra para isso é liberdade – liberdade de luta contra a essencial ambiguidade de ser humano. 

[A raiz das tendências irrevogáveis] *

A essencial ambiguidade de ser humano indica que, por mais que queiramos, nunca podemos dizer: “Esse é o único caminho verdadeiro. É assim que é. Fim de conversa.” Em sua entrevista, Chris Hedges também falou sobre a dor resultante da insistência de um grupo ou religião de que seu ponto de vista é o verdadeiro. 

Como indivíduos, também, temos muitas tendências fundamentalistas e as usamos para nos reconfortar. Ficamos agarrados a uma posição ou crença num esforço de explicar direitinho a realidade, relutantes em tolerar a incerteza e o desconforto de ficar abertos a outras possibilidades. Seguramo-nos a essa posição como nossa plataforma pessoal e nos tornamos muito dogmáticos a respeito.  

A raiz dessas tendências fundamentalistas, dessas tendências dogmáticas, é uma identidade fixas – uma visão fixa que temos de nós mesmos como bons ou maus, importantes ou não, isso ou aquilo. Como uma identidade fixa, precisamos nos ocupar com a tentativa de reorganizar a realidade, pois ela nem sempre se adequa ao nosso ponto de vista. 

Quando vim para Gampo Abbey, eu me considerava uma pessoa apreciável, bondosa e de mente aberta. Parte disso era verdade, mas havia outra que não. Em primeiro lugar, eu era uma terrível diretora. Os outros residentes sentiam-se desabonados por mim.

[A dificuldade de estar aberta ao mundo]*

Eles apontavam meus defeitos, mas eu não conseguia ouvir o que diziam porque minha identidade fixa era muito forte. Cada vez que novas pessoas chegavam para morar no mosteiro, eu era alvo do mesmo tipo de opinião negativa, mas ainda não ouvia. Isso prosseguiu por alguns anos até o dia, como se todos eles tivessem se reunido para uma intervenção, em que finalmente ouvi o que todos me diziam sobre como meu comportamento os afetava. Enfim, a mensagem foi recebida.  

É isso que significa estar em negação: a pessoa não consegue ouvir nada que não se encaixe em sua identidade fixa. Mesmo algo positivo – a pessoa fez um ótimo trabalho ou tem um senso de humor maravilhoso – é filtrado por essa identidade fixa. A pessoa não consegue assimilar, a menos que já faça parte de sua autodefinição.

No budismo, chamamos a noção de uma identidade fixa de “apego ao ego”. É o modo pelo qual tentamos colocar solidez sob nossos pés num mundo em constante mudança. A prática da meditação começa a erodir essa identidade fixa. Ao sentar-se para meditar, a pessoa começa a se ver com mais clareza e percebe como se sente atraída pelas opiniões sobre si mesma. 

[A identidade fixa e o papel das crises]*

Geralmente, o primeiro golpe contra a identidade fixa é precipitado por uma crise. Quando as coisas começam a desmoronar na vida da pessoa, como aconteceu na minha quando vim para Gambo Abbey, a gente sente como se o mundo todo estivesse se esfarelando. Na verdade, porém, o que está se esfarelando é a sua identidade. E, como Chogyam Trungpa nos diz, isso é motivo para comemoração.

O propósito do caminho espiritual é desmascarar, retirar nossa armadura. Quando isso acontece, a sensação é de uma crise porque é uma crise – crise da identidade fixa. O Buda achava que a identidade fixa é a causa do nosso sofrimento. Olhando em maior profundidade, porderíamos dizer que a causa real do sofrimento é a incapacidade de tolerar a incerteza – e achar que é perfeitamente são, perfeitamente normal negar o desenraizamento essencial de ser humano. 

Apego ao ego é nosso meio de negação. Uma vez tendo a ideia fixa “isto sou eu”, enxergamos tudo como uma ameaça ou promessa – ou como algo que não nos importa nem um pouco. Seja o que for que se encontre, ficamos atraídos, sentimos aversão ou indiferença, dependendo do quanto isso representa uma ameaça a nossa autoimagem. 

A identidade fixa é nossa falsa segurança. Nós a mantemos filtrando todas as experiências através dessa perspectiva. Quando gostamos de alguém, geralmente é porque a pessoa nos faz sentir bem.

Ela não estraga nossa viagem, não perturba nossa identidade fixa, então somos amiguinhos. Quando não gostamos de alguém – a pessoa não está em nosso comprimento de onda, portanto, não queremos andar com ela – geralmente é porque ela desafia nossa identidade fixa.

Ficamos desconfortáveis na presença dela porque ela não nos reafirma do modo que queremos e assim não podemos funcionar do modo que desejamos. Muitas vezes pensamos nas pessoas de quem não gostamos como nossas inimigas, mas na verdade elas são importantíssimas para nós. São nossos maiores mestres: mensageiros especiais que aparecem bem quando necessitamos deles para que apontem para a nossa identidade fixa. 

[Shenpa: a medida de apego ao ego]*

O desconforto associado ao desenraizamento, à essencial ambiguidade de ser humano, origina-se no nosso apego de querer as coisas de um certo modo. A palavra tibetana para apego é shenpa.

Pema Chodron e Dzigar Kongtrul

Meu mestre Dzigar Kongtrul chama shenpa  de o barômetro do apego ao ego, uma medida do nosso autodesenvolvimento e autoimportância. Shenpa possui uma qualidade visceral associada ao segurar, ou, inversamente, ao afastar. Esse é o sentimento de eu gosto, eu quero, eu preciso e de eu não gosto, eu não quero, eu não preciso, eu quero isso longe.

Penso em shenpa como ser fisgado. É aquela sensação de estar imobilizado, aquele aperto, fechamento ou batida em retirada que experimentamos quando ficamos desconfortáveis com o que está acontecendo. Shenpa também é a urgência de encontrar alívio desses sentimentos por meio do apego a algo que nos dá prazer. 

Qualquer coisa pode desencadear nossos apegos: alguém que critique nosso trabalho ou nos olhe atravessado; o cachorro que mastiga nosso sapato favorito; quando derramamos algo na nossa melhor gravata. Num minuto estamos bem, no próximo algo acontece e de repente estamos fisgados por raiva, inveja, culpa, recriminação ou dúvida em nós mesmos. 

Esse desconforto, essa sensação de sermos acionados porque as coisas não estão “certas”, porque desejamos que durem mais ou que desapareçam, é a experiência sentida, a experiência visceral da essencial ambiguidade de ser humano.

Em sua maior parte, nosso apego, nosso shenpa, surge involuntariamente – é nossa reação habitual à sensação de insegurança.

Quando somos fisgados, nos voltamos para qualquer coisa que alivie o desconforto – comida, álcool, sexo, consumo, ficamos críticos ou grosseiros. No entanto, quando surge essa tensão, há algo mais proveitoso que podemos fazer.

Assemelha-se ao modo pelo qual podemos lidar com a dor. Uma forma popular de se relacionar com a dor física é a meditação da plena atenção [atenção plena, sati em sânscrito]*. Isso se faz direcionando toda a atenção para a dor enquanto se inspira e expira, tendo como base o ponto que dói.

Em vez de tentar evitar o desconforto, a gente se abre totalmente a ele. Fica-se receptivo à sensação de dor sem ficar residindo na história que a mente maquinou: é ruim; eu não devia me sentir assim; talvez nunca acabe.

Quando você entra em contato com o sentimento nervoso de shenpa, a instrução básica é a mesma dada para lidar com a dor física. Seja um sentimento de eu gosto ou não gosto, ou um estado emocional como solidão, depressão ou ansiedade, abra-se totalmente à sensação, livre de interpretação.

Se já tentou essa abordagem com a dor física, sabe que o resultado pode ser miraculoso. Quando você dá toda atenção ao joelho, às costas ou à cabeça – seja o que for que dói – e abandona o enredo, a trama, do bom/mau, certo/errado e simplesmente experimenta a dor de modo direto, nem que seja por um período curto, suas ideias sobre a dor e, geralmente, a dor em si mesma se dissolvem.

[Como superar o sofrimento de shenpa?]*

Shantideva dizia que o sofrimento que experimentamos com a dor física é inteiramente conceitual. Ele não se origina na sensação propriamente dita, mas no modo como a vemos. Ele usou o exemplo da Karna, uma seita da Índia antiga em que os membros se queimavam e se cortavam como parte da prática ritual.

Eles associavam a dor extrema ao êxtase espiritual, portanto ela tinha um significado positivo para eles. Muitos atletas experimentam algo semelhante quando “sentem a musculatura queimar”. A sensação física por si só não é boa nem má; é nossa interpretação dela que a deixa assim.

Isso me lembra de algo que aconteceu quando meu filho audacioso tinha uns 12 anos. Estávamos parados numa minúscula plataforma na proa de um navio – como Leonardo DiCaprio e Kate Winslet no filme Titanic – e comecei a descrever meu medo de altura. Disse-lhe que não sabia se poderia ficar ali, que estava tendo todo tipo de sensação física e que estava com as pernas moles.

Nunca irei me esquecer da expressão no rosto dele ao dizer: “Mãe, é bem assim que eu me sinto!” A diferença é que ele amava a sensação. Todos os meus sobrinhos e sobrinhas praticam bungee jump, exploram cavernas e curtem aventuras que eu evito a todo custo só porque tenho aversão ao mesmo sentimento que os entusiasma.

[Um minuto e meio com as emoções e apenas isso]*

No entanto, há uma abordagem que podemos adotar em relação à essencial ambiguidade de ser humano que nos permite trabalhar com sentimentos de medo e aversão, em vez de nos afastarmos deles. Se conseguirmos entrar em contato com a sensação como sensação e nos abrirmos a ela sem rotulá-la de boa ou má, até mesmo quando sentirmos o impulso de recuar, poderemos estar presentes e seguirmos adiante com a sensação.

Em A cientista que curou seu próprio cérebro [My Stroke of Insight], o livro da neurocientista Jill Bolte Taylor sobre sua recuperação de um grave AVC, ela explica o mecanismo fisiológico por trás das emoções: uma emoção como raiva que seja uma reação automática dura apenas 90 segundos desde o momento em que é desencadeada até seguir seu rumo. Um minuto e meio, só isso. 

Quando dura mais tempo, o que geralmente acontece, é porque preferimos reavivá-la. Poderíamos tirar vantagem da natureza mutável, cambiante, das nossas emoções. Mas tiramos? Não. Em vez disso, quando surge uma emoção, nós a abastecemos com nossos pensamentos e o que deveria durar um minuto e meio pode arrastar-se por dez ou vinte anos. Nós simplesmente ficamos reciclando o enredo. Ficamos fortalecendo nossos velhos hábitos.

A maioria das pessoas tem problemas físicos ou mentais que lhes causaram aflição no passado. E quando sentimos o sopro da aproximação de um deles – uma crise asmática incipiente, um sintoma de fadiga crônica, uma pontada de ansiedade – entramos em pânico. Em vez de relaxar com a sensação e deixar que ela cumpra seu minuto e meio enquanto ficamos totalmente abertos e receptivos a ela, dizemos: “Ah, não, ah, não, aqui está de novo.”

Nós nos recusamos a sentir a essencial ambiguidade quando ela chega dessa forma e então fazemos a coisa que será a mais prejudicial para nós: aumentamos a rotação dos nossos pensamentos a respeito. E se isso acontecer? E se aquilo acontecer? Revolvemos grande quantidade de atividade mental. Corpo, fala e mente ficam envolvidos na tarefa de escapar da sensação, o que só faz com que ela continue sem parar.

[Samsara]*

Podemos contrapor essa reação por meio do treinamento em estar presentes. Uma mulher que conhecia a observação de Jill Bolte Taylor sobre a duração das emoções enviou-me uma carta em que descrevia o que ela faz quando uma sensação de inquietude aparece. “Apenas faço o lance do minuto e meio”, escreveu ela.

Portanto, essa é uma boa instrução prática: quando você entrar em contato com o desenraizamento, um modo de lidar com essa sensação tensa de apreensão é “fazer o lance do minuto e meio”.

Reconheça a sensação, dê-lhe toda sua atenção compassiva, até acolhedora, e, mesmo que seja apenas por alguns segundos, abandone o enredo sobre a sensação. Isso lhe permitirá uma experiência direta, livre de interpretações. Não a abasteça com conceitos ou opiniões sobre se é boa ou má. Simplesmente fique presente na sensação.

Onde se localiza no seu corpo? Permanece igual por muito tempo? Ela muda de lugar e se modifica? Ego ou identidade fixa não significa apenas que temos uma ideia fixa sobre nós mesmos. Significa também que temos uma ideia fixa sobre tudo que percebemos. Eu tenho uma ideia fixa sobre você; você tem uma ideia fixa sobre mim. E uma vez que haja esse sentimento de separação, ele dá origem a emoções fortes.

No Budismo, emoções fortes, como raiva, ânsia, orgulho e inveja, são conhecidas como kleshas – emoções conflitantes que anuviam a mente. As kleshas são nosso veículo para fugir do desenraizamento e, assim sendo, cada vez que cedemos a elas, nossos hábitos pré-existentes são reforçados. No Budismo, esse andar em círculos, reciclando os mesmos padrões, é chamado de samsara. E samsara é igual à dor.

[O nosso trabalho diário é ausência de controle e o apego ao ego]*

Estamos sempre tentando escapar da essencial ambiguidade de ser humano, e não conseguimos. Não podemos fugir disso mais do que podemos fugir da mudança nem mais do que podemos fugir da morte. A causa do nosso sofrimento é nossa reação à realidade para a qual não há escape: apego ao ego e todos os problemas que se originam disso, todas as coisas que dificultam nossa sensação de conforto na própria pele e a possibilidade de nos darmos bem uns com os outros.

Se o modo de lidar com esses sentimentos é estar presente com eles sem abastecer o enredo, então isso requer a pergunta: como entrar em contato com a essencial ambiguidade de ser humano? Na verdade, não é difícil, pois uma inquietude subjacente costuma estar presente em nossa vida. É bem fácil reconhecer, mas não tão fácil interromper.

Podemos experimentar essa inquietude como qualquer coisa que vai de um ligeiro nervosismo ao puro terror. A ansiedade nos deixa vulneráveis, coisa que geralmente não apreciamos. A vulnerabilidade vem de várias formas. Podemos nos sentir desequilibrados, como se não soubéssemos o que está acontecendo, não conseguimos controlar as coisas. Podemos nos sentir sós, deprimidos ou irritados. A maioria das pessoas quer evitar emoções que as deixam vulneráveis, portanto fazem praticamente qualquer coisa que as afaste delas.

[Tomando as emoções como caminho para o despertar]*

No entanto se, em vez de pensar nesses sentimentos como maus, nós os considerarmos placas de estrada ou barômetros que nos avisam que estamos em contato com o desenraizamento, veríamos os sentimentos como realmente são: os portões para a libertação, uma porta aberta para a liberdade do sofrimento, o caminho para nosso mais profundo bem-estar e alegria.

Temos uma escolha. Podemos passar a vida toda sofrendo porque não conseguimos relaxar com o modo que as coisas realmente são, ou podemos relaxar e abraçar a flexibilidade da situação humana, que é fresca, não fixada, sem preconceito.

Portanto, o desafio é perceber o puxão emocional do shenpa quando ele surge e ficar com ele por um minuto e meio sem o enredo. Será que você pode fazer isso uma vez por dia ou muitas vezes, conforme o sentimento aparece? Esse é o desafio. Esse é o processo de desmascarar, de relaxar, de abrir a mente e o coração.



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Autor
Coordenador
Praticante budista e instrutor de meditação. Desde 2011 dedica seu tempo à descoberta do coração desperto (bodicita), a partir dos ensinamentos de Buda e nas instruções práticas de Lama Padma Samten. Casado, pai de 2 filhos, é coordenador da Roda do Darma e tutor no CEBB.

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