“Entre todos os seres do samsara, os humanos encontram uma chave para entender o que está acontecendo. Os outros seres podem ser muito espertos, muito rápidos, muito hábeis em muitas diferentes coisas, mais do que os seres humanos. No entanto, eles não têm uma linguagem, não têm um ensinamento, uma possibilidade de entender esses aspectos profundos da existência.
Então, se diz que o Buda veio em corpo humano. Eu sempre acho isso um pouco injusto. Acho que deveria ter vindo também budas em outros corpos que pudessem ajudar os outros seres em outros âmbitos. Eu, às vezes, desconfio que existem budas em outros corpos, em outros seres, não apenas nos humanos.
Mas nos ensinamentos budistas se diz que a vida humana preciosa é justo por isso, porque só os seres humanos realmente acessam essa visão. Nós temos uma natureza humana preciosa, isso é muito extraordinário. Não precisaríamos viver de um modo obscuro, fechado, incapaz de reconhecer a amplidão de tudo. Nós poderíamos viver na consciência da realidade como ela é. Não precisaríamos ficar presos a uma vida comum.
Esse aspecto da vida comum é muito interessante. Nós repetimos, ano após ano, as coisas comuns, esperando não envelhecer, mas vamos envelhecendo. E as coisas comuns apenas se repetem, pois elas são coisas comuns.
Eu acompanhei várias pessoas, algumas próximas, se aproximando da morte no período final. Vi que elas tinham impulsos e visões comuns. Ao se aproximarem da morte é tudo igual. Lembro de um amigo que tinha um grande coração, uma compreensão de ecologia, de fontes alternativas de energia, uma pessoa super hábil. Usou a vida dele de uma forma criativa, interessante. E ele se aproximou da morte assim também, tinha ideias comuns. Foi um dos primeiros que criou uma planta industrial para processamento por biodigestão para gerar energia, metano, e, a partir disso, tocar uma indústria. Ele fez um projeto belíssimo. Então, ele tinha essa mente.
E ele foi envelhecendo, eu o vi assim, com incontinência urinária, andava sempre com recipiente para colher a urina. Viveu quase dez anos assim, eu acho. E a felicidade dele era ir a um restaurante comer alguma coisa. Nos últimos anos, não falava mais. Ele quase morreu, retornou, passou mais uns quatro meses vendo televisão assim. E, então, morreu aos oitenta e seis anos, mais ou menos. A vida dele passou. Isso é um pouco inútil.
A visão comum se repete, nós usamos as mesmas coisas de novo, de novo e de novo. Até que o nosso corpo está desgastado. E nós fazemos como podemos o que sempre fizemos, até não poder mais… E morremos. Não é uma coisa muito extraordinária. Em outros tempos se dizia: os velhos têm sabedoria. Agora a situação está ficando assim, eles têm uma sabedoria de que as coisas passam, mas isso não é propriamente uma sabedoria. Isso é um jeito de perder tempo. Na vida comum nós perdemos tempo.
Os ensinamentos, especialmente os tibetanos, dizem: nós temos uma vida preciosa, não deveríamos perder tempo; deveríamos usar essa vida humana preciosa e direcionar a nossa vida de uma forma apropriada. No mínimo, não embarcar no carnaval e fazer um retiro, uma coisa direita [risos]. Isso é um bom sinal!
Os ensinamentos tibetanos dizem nos Quatro Pensamentos que Transformam a Mente: você tem uma vida humana preciosa, mas ela é impermanente. Todas as condições favoráveis dessa vida humana preciosa, como saúde e lucidez, repentinamente podem desaparecer.
Chagdud Tulku Rinpoche também dizia assim: olha, não tem uma fila por idade. Não quero preocupar vocês, mas a fila não é por idade. Ele mesmo viu muitos alunos bem mais jovens do que ele morrer. Esse é o ponto. Chagdud dizia: nós morremos por carma… O carma conduz o processo e define a duração da vida.
Na visão tibetana, se nós salvamos vidas, a nossa vida se prolonga. Chatral Rinpoche foi um exemplo disso. O ensinamento e a prática dele, por muito tempo, foram salvar a vida dos seres. E ele teve uma longa vida. Muito extraordinário. Mas, ainda assim, lá pelos cem anos todo mundo morre. Se não for nos oitenta, noventa, setenta, sessenta… As pessoas vão morrer, num certo momento morrem.
Então, entendemos aquilo que é vantajoso, que nos permite fazer práticas, dedicar a nossa energia, focar a mente, sentar reto e estudar, olhar numa certa direção, tentar obter resultados e avançar. Essa energia vital se esgota. Tem um momento em que nós estamos com dificuldade de fazer isso. É importante nós aproveitarmos a vitalidade que temos e seguir.”
Achei muito bom o texto.E gostaria de me aprofundar no tema: Vida humana preciosa.
Oi Maria!
Você pode aprofundar o tema com os livros “Os portões da prática budista”, “Comentários sobre o Ngondro” de Chagdud Rinpoche.
Existe também o livro “As palavras do meu professor perfeito”, de Patrul Rinpoche.
Obrigado pela partilha no caminho!