Patrul Rinpoche, Orgyen Jigme Chökyi Wangpo (1808–1887), um praticante andarilho na antiga tradição de renunciantes vagabundos, tornou-se um dos professores espirituais mais reverenciados da história tibetana, amplamente conhecido como erudito e autor, ao mesmo tempo em que vivia uma vida de extrema simplicidade.
Nessa publicação, o monge budista Matthieu Ricard nos oferece um vislumbre da vida de Patrul Rinpoche, um iogue errante que se tornou um dos mais ilustres mestres do budismo tibetano.
Como um forte defensor das felicidades da solitude, ele sempre enfatizou a futilidade das buscas e ambições mundanas [As 8 preocupações mudanas]. A memória do exemplo de sua vida ainda está muito viva nos dias de hoje, oferecendo uma fonte de inspiração sempre fresca para os praticantes do budismo tibetano.
Um detentor exemplar dos mais puros ideais budistas de renúncia, sabedoria e compaixão, Patrul Rinpoche passou a maior parte de sua vida perambulando pelas montanhas e vivendo em cavernas, florestas e eremitérios remotos. Quando ele deixava um lugar, ele partia sem um destino específico; quando ficava em algum lugar, não tinha planos fixos. Nas áreas selvagens e de difícil acesso [ montanhas, florestas tibetanas ], sua meditação favorita era a prática de cultivar bodicita – o desejo [sincero] de aliviar o sofrimento de todos os seres sencientes e levá-los à liberdade final da iluminação.
Em sua juventude, Patrul estudou com os principais professores da época. Com sua memória notável, ele aprendeu de cor a maioria dos ensinamentos orais que ouvia, tornando-se assim capaz de elucidar os aspectos mais complexos da filosofia budista sem consultar uma única página de texto, nem mesmo quando ensinava por meses seguidos.
Totalmente desinteressado em assuntos ordinários, Patrul naturalmente abandonou as 8 preocupações mundanas, que consistem nas esperanças e medos comuns de todos os seres – desejar ganhar e temer a perda; ansiar pelo prazer e temer a dor; esperar por elogios e temer a crítica; desejar a fama e temer a desgraça.
Patrul Rinpoche é lembrado como um contemplativo e escolástico que, por meio de sua prática, alcançou a mais alta realização da realidade última.
Patrul geralmente se recusava a aceitar as oferendas que costumam ser feitas a um professor ou a uma figura religiosa respeitada de acordo com a tradição [tibetana]. Presenteado com presentes valiosos como ouro e prata, ele os deixava no chão, abandonando-os com a mesma facilidade com que se abandona cuspe na poeira.
Na velhice, porém, começou a aceitar algumas oferendas que dava a mendigos ou usava para fazer estátuas, construir paredes mani (paredes incríveis de às vezes centenas de milhares de pedras esculpidas com o mantra: Om mani padme hum), fazer manteiga – oferendas de lamparinas e se engajando em outras atividades meritórias.
Na hora de sua morte, por volta dos 70 anos, as poucas posses pessoais de Patrul Rinpoche eram praticamente as mesmas de quando ele começou como um renunciante: dois textos (O Caminho do Bodhisattva [de Shantideva] e Os Versos Fundamentais do Caminho do Meio [de Nagarjuna]), uma tigela de mendicância, uma bolsa de lã vermelha segurando seu xale amarelo de monge, uma roda de oração, sua bengala e uma pequena panela de metal para fazer chá.
Patrul Rinpoche é lembrado até hoje por ilustres mestres contemporâneos como um contemplativo e erudito que, por meio de sua prática, alcançou a mais alta realização da realidade última. Dilgo Khyentse Rinpoche afirmou que Patrul era incomparável em sua realização da visão, meditação e conduta do Dzogchen. Sua Santidade o 14º Dalai Lama frequentemente elogia os ensinamentos de Patrul Rinpoche sobre a bodhicitta, que ele mesmo pratica e transmite.
Enquanto estava em retiro em lugares remotos, Patrul escreveu tratados originais profundos, a maioria dos quais sobreviveu. Ele compôs espontaneamente muitos poemas e conselhos espirituais; muitos deles desapareceram nas mãos das pessoas para quem foram escritos.
Sua obra mais conhecida, composta em uma caverna acima do Mosteiro Dzogchen, é As Palavras do Meu Professor Perfeito. Composta em uma mistura de tibetano clássico e coloquial, é uma das instruções de ensino e prática mais amplamente lidas sobre as práticas preliminares da escola Nyingma. Reverenciada por todas as quatro escolas do budismo tibetano, foi traduzido para vários idiomas.
Eu me sinto muito afortunado por ter sido capaz de colecionar, ao longo de mais de 30 anos, um grande número de histórias orais sobre Patrul Rinpoche que foram contadas com muito amor e entusiasmo pelos herdeiros espirituais de sua linhagem, alguns dos quais realmente conheceram os alunos diretos de Patrul Rinpoche.
Em uma cultura em que a transmissão oral ainda desempenha um papel importante, os tibetanos são conhecidos por sua capacidade de reter e contar histórias em grandes detalhes. Ao ouvi-las, muitas vezes se tem a sensação de testemunhar os eventos como eles ocorreram.
Elas oferecem vislumbres vívidos das maneiras de um ser altamente realizado enquanto ele interage com as pessoas, transmite os ensinamentos budistas tanto formal quanto informalmente e vive sua vida cotidiana, que é tanto surpreendente quanto humilde, frequentemente bastante humorada e a ilustração perfeita da liberdade inata [dos seres, a natureza de Buda].
Um conto sobre Patrul Rinpoche
Patrul e a Viúva
Enquanto Patrul viajava a pé pelos vastos planaltos de Golok, ao norte de Dzachukha, ele encontrou uma mulher, mãe de três filhos, cujo marido acabara de ser morto por um changthang dremong, o enorme urso das estepes tibetanas, uma fera muito mais perigosa do que o dremong das florestas. Patrul perguntou à mulher para onde ela estava indo, e ela disse que estava indo para Dzachukha com seus três filhos para mendigar comida, pois a perda de seu marido os havia deixados desamparados.
Então ela começou a chorar.
“Ka-ho! Não se preocupe!” disse Patrul. “Eu vou te ajudar. Eu também estou indo para Dzachukha. Vamos viajar juntos.”
Ela concordou, e assim caminharam juntos por muitos dias. À noite, eles dormiam do lado de fora sob, o céu. Patrul acomodava uma ou duas crianças nos dobrados de seu casaco de pele de carneiro, e a mulher fazia o mesmo com o resto. Durante o dia, Patrul carregava uma criança nas costas, a mulher carregava a segunda, e a terceira caminhava atrás.
Quando a mulher pedia esmolas nas aldeias e acampamentos nômades que eles passavam, Patrul pedia ao lado dela, pedindo tsampa, manteiga e queijo. Os viajantes que eles encontravam presumiam que eles eram uma família de mendigos. Ninguém – especialmente a recém-viúva – imaginava a identidade de seu companheiro desleixado.
Eventualmente, eles chegaram a Dzachukha. Naquele dia, a mulher foi pedir comida sozinha, e Patrul também. À noite, quando voltaram, a viúva notou que Patrul estava com um olhar sombrio no rosto.
A mulher perguntou: “O que há de errado? Você parece irritado.”
Patrul desconsiderou, dizendo: “Não é nada. Eu tinha uma tarefa para cumprir, mas as pessoas aqui não me deixaram terminar. Eles estão fazendo um grande alvoroço por nada.”
Surpresa, a mulher perguntou: “Que trabalho você poderia ter por aqui?”
Patrul respondeu: “Deixa pra lá, vamos embora.”
Eles chegaram a um mosteiro no lado de uma colina, onde Patrul parou.
Ele se voltou para a viúva e disse: “Eu tenho que entrar. Você também pode entrar, mas não agora. Volte depois de alguns dias.”
A mulher disse: “Não, não vamos nos separar; vamos entrar juntos. Até agora, você foi tão gentil comigo. Podíamos até nos casar. Se não, deixe-me pelo menos ficar ao seu lado. Eu me beneficiaria de sua bondade.”
“Não, isso não vai dar certo”, respondeu Patrul, inflexível. “Até agora, fiz o meu melhor para ajudá-la, mas as pessoas aqui são encrenqueiras. Não devemos entrar juntos. Volte em alguns dias; você me encontrará lá dentro.”
Então, Patrul subiu a colina em direção ao monastério, enquanto a viúva e seus filhos ficaram embaixo da colina, mendigando por comida.
Assim que entrou no monastério, contrariando seu hábito de recusar ofertas, Patrul ordenou que quaisquer provisões oferecidas a ele fossem guardadas e reservadas para um convidado muito especial que ele estava esperando e que precisaria de provisões.
“As pessoas diziam: ‘Patrul Rinpoche chegou! Ele dará ensinamentos sobre o Caminho do Bodhisattva!’
Homens e mulheres, jovens e velhos, monges e monjas, praticantes leigos tanto homens quanto mulheres, todos correram para ouvir o grande Patrul Rinpoche. As pessoas começaram a se reunir em uma grande multidão, trazendo cavalos e iaques que carregavam suas tendas e mantimentos.
Quando a viúva ouviu a notícia, ficou emocionada, pensando: ‘Um grande lama chegou! Esta será minha chance de fazer oferendas e solicitar orações em nome de meu falecido marido!’
Junto com todo mundo, ela subiu ao monastério, trazendo seus três filhos órfãos.
A pobre viúva e sua família tiveram que sentar na extremidade do monastério e distante da grande multidão para ouvir os ensinamentos de Patrul. Ela estava tão longe que não conseguia ver claramente as características dele. No final dos ensinamentos, como todos os outros, ela ficou em uma longa fila, esperando para receber a bênção do grande lama.
Depois de um longo tempo, ela avançou na longa fila até que finalmente chegou perto o suficiente para ver que o grande lama, Patrul Rinpoche, não era outro senão seu desleixado, gentil e fiel companheiro de viagem.
Comovida pela devoção e espanto, ela se aproximou de Patrul, dizendo: ‘Perdoe-me por não saber quem você era! Você é como o Buda em pessoa! Perdoe-me por fazer você carregar meus filhos! Perdoe-me por pedir que você se casasse comigo! Perdoe-me por tudo!’
Patrul desconsiderou as desculpas dela, dizendo: ‘Não pense mais nisso!’
Voltando-se para os assistentes do monastério, ele disse: “Este é o convidado muito especial que eu estava esperando! Por favor, tragam toda a manteiga, queijo e mantimentos que estávamos guardando especialmente para ela!”
No dia seguinte, todos no vale haviam ouvido a notícia do retorno do grande lama.
Tradução livre do português brasileiro, apenas para uso pessoal.
Referência: Who Was Patrul Rinpoche? (Lions Roar)
Nota – No texto original, em inglês, o Matthieu Ricard traz outras histórias sobre Patrul Rinpoche. Aqui, para não alongar a publicação, trouxe apenas o primeiro conto.
A biografia de Patrul Rinpoche
Para aprofundar no tema, sugiro o livro Enlightened Vagabond: The Life and Teachings of Patrul Rinpoche (até o momento sem tradução para português) e editado por Matthieu Ricard
Saiba mais: Uma Breve Biografia de Dza Patrul Rinpoche